Adwig
Adwig
Rainha Imortal
Saga Universo em Órbita
Vol. V
Ciclo I
Eder B. Jr.
Literunico
PARTE 1
Passos apressados. Isso além de ser incomum, para aquele local, significava um mal presságio. Era uma caverna, cuja entrada parecia um calabouço na parte mais sombria de um bosque desabitado. Sem flores, sem frutos, repleto de uma vegetação traiçoeira, espinhosa, gosmenta, venenosa. Uma surpresa fazer parte de um território elfo, que normalmente era o oposto disso. Mas ao aprofundar naquela caverna, não só a beleza élfica tradicional surgia, com sua luz e brilho, mas também outros detalhes tão espantosos, enigmáticos e grandiosos que nem pareciam daquele mundo. Os túneis pareciam se tornar corredores de um castelo imponente, enfeitado por aspectos naturais, que confundiam arquitetura inteligente, com vida pulsante. Ali, passos de quem quer que fosse não eram comuns, muito menos apressados.
A Rainha que vivia ali, apesar de ser a Rainha de direito daquele povo, hoje era mais tratada mesmo apenas como uma lenda para os que não sabiam que ela era real, ou como uma bruxa para aqueles que sabiam que alguém vivia ali. Poucos fiéis seguidores antigos a visitavam, trazendo notícias ou levando conhecimento para alguma causa generosa.
Adwig é uma das imortais daquele mundo, talvez a única ainda com tal nível, que não se deixou contaminar pelo poder. Milenar, acabou sucumbindo pela ignorância que, com a evolução, dominou a política dos elfos.
Passava pela cabeça dela a ironia que era alguém correndo em sua direção em relação ao tempo que ela já tinha vivido e que ela ainda iria viver. Nada poderia ser tão urgente.
E se quem corresse e surgisse frente Adwig fosse outro imortal, alguém que ela não via há centenas de anos? Seus olhos arregalaram quando ela percebeu de quem se tratava.
— Chegou a hora, irmã! A profecia está se cumprindo. Um raio trouxe um portal para levar nosso pai de volta. Temos que nos preparar.
Uma figura tão parecida com ela, mas a qual ela já quase não se lembrava em sua memória, de tempos tão remotos, seu irmão gêmeo, parado à sua frente. Alto, pálido, magro, longos e lisos cabelos de um loiro acobreado, olhos escuros como a noite. Era como se ela se olhasse no espelho e não se reconhecesse mais.
— Isso é só uma história de criança, meu irmão! Depois de tanto tempo, você vem me procurar dizendo isso? — Respondeu, incrédula.
— Não, Adwig, chegou o momento de sair das cavernas e voltar a ser quem você deveria ser.
— Teleret, não quero parecer pouco sentimental, mas todas as vezes que me visitou trazendo notícias de grandes acontecimentos, ou não eram verdadeiros, ou eram super valorizados. — Adwig desdenhou, fitando o irmão. Reparava agora que ele estava mal vestido, roupas rasgadas, com a aparência de sujo, de quem não se cuidava a muito tempo, muito tempo mesmo. — E o que tem acontecido contigo? Por que está assim?
— Irmã, não podemos demorar. Você sabe que a passagem de tempo no planeta de nosso pai é diferente. Ele passa anos lá, mas aqui são poucas horas. Você sentiu que ele voltou, não sentiu? Eu o acompanhei desde então e ele disse que dessa vez só voltaria a entrar num portal se fosse chamado pela profecia. — Teleret realmente parecia muito transtornado, enquanto contava toda a história.
— Eu imaginei que pudesse ter sido ele mesmo. Da mesma forma que ele não fez questão de vir me ver, eu também não fui atrás dele. E sobre essa tal de profecia que nunca aconteceu, quem sabe não é outro amor que ele encontrou novamente em algum planeta? Outra mentira, outra cena, outra criação dele. — Adwig não demonstrava em sua feição, nem em seu gestual a mágoa e indignação que tinha com o pai, que trazia em suas palavras.
— Sei que você virá, mais cedo ou mais tarde. Preciso reunir os elfos! Se preferir, procure Mantelar, ele está no Vale dos Gigantes. Sei que nele você irá confiar. — Teleret saiu da mesma forma como surgiu.
Adwig voltou para suas escrituras. Continuava escrevendo suas memórias. Mas a cada palavra, a cada ideia, a cada lembrança, a voz de seu irmão voltava à sua cabeça. E se seu pai realmente tivesse sido chamado pela profecia? Ela foi preparada por toda sua infância para aquele momento. Finalmente poderia salvar seu povo. Finalmente poderia rever seus entes queridos que se foram. Finalmente a morte e talvez uma vida de verdade.
Adwig sabia que era incrivelmente linda dentro do padrão de beleza do seu mundo e isso era algo perto do absurdo, por serem os elfos, como um todo, muito parecidos. Mas ela ainda assim se destacava, praticamente brilhava. E ainda era imortal. A mais admirada das admiradas. Mesmo com tudo isso, sentia-se uma aberração. Era assim, justamente porque ela não era como todos os outros. Ela perdia as pessoas, que, diferente dela, envelheciam e morriam. Tinha mais poderes, era filha de um deus, que não queria ser um deus. Que diferente do que os elfos acreditavam em sua religião, contavam e cantavam em seus cultos, não era onipresente, não era onipotente, não era onisciente. Nem de longe. Apesar de ser criador da vida naquele planeta. Apesar de ser o único que podia se teletransportar para outros planetas e que conhecia outras formas de vida. Lembrou-se também de Mantelar. Ele era um Tryper. Os Tryper eram descendentes miscigenados de elfos, fadas, gigantes e coraces, as 4 raças daquele mundo. A combinação das raças não era comum, tendo em vista que, depois da ruptura geológica do planeta, os povos eram geograficamente distantes uns dos outros e quando se aproximavam, guerriavam. A existência de um único rei ou rainha dos povos, a muito tempo era impossível e fazia parte dos acervos de lendas que acompanhavam as histórias de Deus, que também, aos poucos iam se perdendo com o tempo, sendo substituídas por histórias de outros deuses que surgiam no imaginário dos povos, que buscavam uma identificação mais próxima com seus semelhantes.
E nesse contexto, os Trypers, rejeitados, foram se unindo, marginalizados, diferentes, inclusive entre si. Adwig se identificou com eles e os acolheu. Mantelar era ainda uma criança quando conheceu Adwig, que, nessa época, tentava se mostrar mais como uma bruxa boa do que uma elfa. Ela se passava por uma Tryper poderosa, mas não demonstrava todo seu poder. Mantelar via Adwig como uma heroína, seu grande exemplo a ser seguido e, quando mais velho, mais forte e mais poderoso, se tornou o protetor dela. Ela realmente não precisava de um, mas o papel era bem ocupado por ele e isso fazia bem não só a ele, como também a comunidade que se orgulhava do quase gigante, com aparência de elfo.
E, sem perceber, enquanto pensava nisso tudo, Adwig já estava chegando no Vale dos Gigantes. Porém, ela mal podia imaginar o que ia encontrar.
PARTE 2
Ao passar pelas grandes colunas de pedra que rodeavam todo o vale, construídas para proteção de possíveis seres mais fortes do que os Gigantes, mas mais consideradas como obras de arte, Adwig começava a ouvir sons, urros de dor. Percebia um avermelhado no ar e fuligem que parecia indicar um grande incêndio. Mais adiante, podia ter a visão do Vale inteiro, as enormes construções incríveis e no centro da cidade um grande mar de fogo. O cheiro de carne queimando, vindo de um lugar que ainda estava distante e a fumaça escura não eram bons sinais, novamente.
Adwig acelerou o passo, permanecendo furtiva, procurando não ser notada, mas estranhamente as ruas, que pela sua lembrança eram repletas de gigantes em qualquer horário do dia, fossem, trabalhando, fossem comemorando, seres com grande disposição o tempo inteiro, estavam vazias. Podia escutar, em alguns momentos, murmúrios e ruídos vindos das casas. Os olhos de Adwig se arregalaram com o pensamento do que poderia estar assustando daquela forma os Gigantes.
Eles tinham grande resistência contra a magia das fadas, as habilidades élficas eram quase inúteis contra eles e a incrível força dos coraces não se comparava com a dos gigantes, mesmo eles sendo mais ágeis. Numa grande guerra, mesmo se acontecesse algo impossível, como a união das três raças contra os Gigantes, ainda assim eles não seriam vencidos facilmente. E, com certeza, não ficariam assustados e reclusos diante de algum perigo.
Adwig acreditava que o único lugar que encontraria Mantelar, se ele estivesse no Vale dos Gigantes seria ao Norte da cidadela, perto do encontro dos riachos. Poderia utilizar um caminho mais rápido, mas acreditava que precisava ir até o Centro, saber o que acontecia e quem sabe ajudar.
Quanto mais se aproximava, mais alto ficavam os gritos de dor que começavam a se confundir com lamúrias e mal dizeres. Num primeiro momento, Adwig acreditava que eles haviam sido atacados por alguém, mas agora, sentia que não se tratava de um confronto, se assemelhava com um sentimento de entrega, de reconhecimento de derrota com a morte.
Ao chegar na Grande Praça, local magnífico, onde os Gigantes costumavam fazer feiras livres de dia e grandes apresentações artísticas à noite, seu choque foi incomparável com qualquer outro que possa ter sentido nos seus séculos de vida. Alguns gigantes utilizavam trajes que pareciam vedar completamente dos pés a cabeça e manipulavam grandes seringas com agulhas, injetando algo nos braços de outros gigantes, amarrados. Após todos ali, aproximadamente uns 20, serem alvejados pelas agulhas, eles foram desamarrados e levados para a outra ponta e outros tantos ocupavam seus lugares vagos. Os que saíram iam sendo levados para o local de onde o fogo vinha, uma chama muito alta. Num determinado ponto precisavam ser praticamente carregados. Eles, então, se lançavam às chamas. Queimavam vivos! Uma enorme pilha se fazia de corpos de gigantes. Alguns, das rodadas anteriores, ainda gritavam lá dentro, quando mais outros entravam, usavam suas últimas forças para bradarem de dor.
O primeiro impulso de Adwig foi usar seu poder e fazer algo. Ela quis voar para o meio da Praça, apagar as chamas e parar com toda aquela loucura. Mas, em primeiro lugar, ela não queria ser notada, quem dirá poder ser reconhecida. Depois, ela não sabia exatamente o que significava tudo aquilo. Algum motivo muito sério, os Gigantes tinham para mandar seus entes queridos para uma morte dessas. E tantos...
Adwig estava desolada, mas resolveu chegar logo até onde achava que podia encontrar Mantelar. Quem sabe ele teria respostas.
Quando Adwig, seguindo o Riacho Seis, chegou ao encontro deste com o Riacho Cinco, evento que causava um espetáculo visual, repleto de cores e movimentos sincronizados das águas, as lembranças acenderam em sua cabeça, trazendo até alguma coisa que ela nem sabia que tinha dentro dela ainda: lampejos de felicidade.
As cidades dos Gigantes conseguiam unir bem modernidades tecnológicas e belezas arquitetônicas, preservando a vida da natureza, mas as periferias eram menos habitadas e mais ricas em fenômenos naturais. Aquele ponto em particular era menos frequentado por eles, pois as árvores eram mais baixas, tinha uma vegetação hostil, que crescia por conta de uma chuva constante, gerada pelo encontro das águas, que favorecia esse tipo de vegetação. Para Mantelar, que não era tão grande como a maioria dos Gigantes, era perfeito e foi ali que ele construiu sua morada, apesar dele, em boa parte de sua vida, ter sido um nômade.
Aquele lugar era repleto de histórias para Adwig, momentos tão únicos que viveu em situações tão diferentes umas das outras. Parecia reviver uma a uma, enquanto chegava até o local onde Mantelar deveria estar. Debaixo de algumas árvores, na entrada do que seria sua casa, realmente estava lá. Ele utilizava uma espécie de luneta, mirando para o céu e apertava alguns botões que disparavam uma luz para o espaço. Falava sozinho, de uma forma que lembrava uma espécie de oração. Adwig se aproximou e Mantelar caiu para trás num tropeço de susto. Quando se recuperou do desequilíbrio, não pôde acreditar que era ela mesma quem estava à sua frente.
Adwig, para Mantelar, não era só uma grande amiga. Era sua rainha, ama, mentora, tutora, protegida e protetora, companheira de batalhas, colega de pesquisas científicas... Era seu pensamento durante todo o dia, durante toda sua vida. Sua grande paixão, seu grande amor, por quem morreria, se ela permitisse.
— É... É você mesmo? — Gaguejava o meio-gigante, que nesse momento se apequenava diante de sua musa. — Acho que realmente o mundo está acabando, então, não é mesmo? — Completou com um sorriso meio bobo, meio sem saber o que dizer ou o que fazer.
— Mantelar! — Adwig só conseguiu pronunciar o nome dele e o abraçou, chorando copiosamente. Há muito tempo que lágrimas não saiam de seus olhos, possivelmente Mantelar nunca a tivesse visto chorando, pelo menos nada mais do que uma pequena lágrima, olhos marejados. — Não sei mais o que pensar. Meu irmão veio até mim com uma história de meu pai. Vi o que está acontecendo com os Gigantes e agora vem você com essa história de "mundo acabando", isso tudo misturado com a nostalgia que é para mim estar aqui... — Adwig falava entre soluços, já se acalmando do choro, num desabafo de quem, da última vez, se despediu para sempre, num adeus tão triste para ambos e mesmo assim, sem se deixar ser vista aos prantos.
Depois de um silêncio estranho entre os dois, ela saiu dos braços de seus braços, se recompôs e pediu:
— Por favor, primeiro me diga o que está acontecendo com os Gigantes.
— Um vírus é o que está acontecendo. Uma doença maldita, muito contagiosa e incurável, que está dizimando o povo — Contava Mantelar, se lamentando. — Seria irônico se não fosse trágico, um ser microscópico acabar com os Gigantes. Após o contágio, a morte é certa. Os Gigantes morrem aos poucos, mas rapidamente, as mãos e os pés caem, os olhos saltam para fora, o cérebro vai se tornando gelatinoso e começa a vazar pelas orelhas em pedaços. São tantos os efeitos pré-morte, que anestesiar-se e se jogar ao fogo, parece ser até tranquilo. Não há, como você sabe, outra forma dos Gigantes morrerem facilmente, o fogo também garante que os corpos não contaminem outras pessoas. Ainda assim, a espécie corre o risco de extinção. Fiquei recluso, pesquisando vacinas e curas aqui no meu laboratório, até que um dia senti a existência de um portal e a sensação da passagem de seu pai por ele. Você sabe que tenho o poder de sentir esse tipo de coisa, não sabe? — Questionou Mantelar para uma cética Adwig. — Seu pai disse a todos que mesmo sem ter mais poderes, nunca mais sairia desse planeta e que, a pedido dele, um novo portal só se abriria...
— Se a profecia estivesse se cumprindo — disse Adwig ao mesmo tempo que Mantelar — Eu sei, mas você sabe como ele é... — continuava ela.
— Eu sei Adwig, mas também sei que ele, apesar de tudo, é uma pessoa de palavra, mesmo que fossem palavras duras — Mantelar se justificava para os olhares julgadores de Adwig. — Bom, desde então, tento usar as ferramentas de contato, que em outros tempos permitiram que nos comunicássemos com ele, quando ele esteve você sabe onde... Tenho certeza que se lá estivesse, ele se comunicaria de volta comigo. E os sinais da profecia... estão por todos os lados. Adwig, você está aqui, você sabe que chegou a hora de reunificar os reinos e retomar seu trono, não sabe? — Questionou Mantelar, num misto de esperança e medo da resposta.
— Eu ouço essa história desde sempre, mas a fase de acreditar nela passou quando eu ainda era uma criança. — A resposta de Adwig foi mais simples do que a esperada por Mantelar.
— Então, talvez seja hora de finalmente você recuperar um pouco da sua fé que tinha quando criança — respondeu Mantelar, pegando carinhosamente na mão de Adwig.
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